Olá, aqui o diretor Ulisses da Motta
Costa de novo. Vim dividir com vocês uma história curiosa que aconteceu ontem,
dia 31 de janeiro de 2013, na gravação da trilha sonora de Kassandra.
Pensando
hoje, um dia depois, acho que ontem eu vi um dos melhores mais fantásticos de
criação artística que vi desde quando comecei a trabalhar com cinema. E
envolve o gênio musical do Chico Machado Pereira (compositor) e do Roberto Coutinho (engenheiro de som).
Sério, foi extraordinário.
Estava então
acompanhando uma sessão de gravação da trilha. Boa parte da música já tinha
sido gravada para as cenas mais cruciais. Faltava, contudo, alguma coisa mais
sólida para as sequências de pesadelo -- inicialmente, usaríamos uma série de
infrassons. Música mesmo, só nas cenas passadas na "realidade".
E, para essas
cenas de realidade, uma das ideias do Chico era fazer alguns efeitos musicais
usando as cordas de um piano dentro da sua caixa acústica, para complementar o arranjo do que já foi gravado. Em palavras simples:
o Roberto desmontou o sistema de martelos do piano que há no Ampli
Studio e o Chico poderia tocar diretamente nas cordas. Já tínhamos usado
essa ideia (de outra maneira, com outro conceito) em outro curta, Ninho dos Pequenos (foto
acima - veja o filme aqui).
Chico sentou
no piano e começou a testar possibilidades de som -- que são quase infinitas,
já que as cordas ficam ressoando por tempo indeterminado, a frequência de cada uma se
misturando à outra. E ele começou a brincar. Sem estar gravando nada valendo,
nada pensado para o filme. Apenas brincando de tocar as cordas do piano com uma
palheta de guitarra.
A "recreação" durou uns minutos, até ele parar e dizer:
"Pronto, fiz música concreta".
Eu estava no estúdio neste momento. Saí dele e
entrei na técnica. E eis que noto que o Roberto tinha gravado a
"brincadeira" do Chico. Eles já tinham planejado de usar sons de
piano invertidos para criar alguns climas mais etéreos, e por isso o Roberto
inverteu toda a "música concreta" que o Chico tinha feito e, talvez
sem pensar (pensou?), deu play junto com a cena de pesadelo que abre o filme.
O resultado
foi assombroso. Não: assustador é a palavra. Em todos os sentidos.
A loucurada de notas e sons invertidos se sobrepondo fez sentido não só
com a ação dos planos, mas fechou até com os cortes da montagem -- naquele tipo
de sincronia (sinergia?) que só os Deuses do Cinema proporcionam aos seus
devotos. Não só as notas, mas os ruídos que surgiram do nada, como
manifestações fantasmagóricas que nos fez questionar de onde diabos tinham
saído.
Nós três
ficamos abobados. E sentenciamos em conjunto: tínhamos a música para as cenas
do pesadelo. Sem querer. Sem planejar.
A partir daí, foi um festival de
experimentação. Tocar as cordas do piano com um arco de violoncelo. Tocá-las
com uma chave de fenda. Tocá-las com uma escovinha de limpar unhas. Cada nova
tentativa, ao ser invertida, criava música de outra dimensão.
Gurizada,
cês são foda.
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