Paciente: Sexo feminino. Vinte anos.
Estresse pós-traumático. Alucinações visuais.
Avistamentos de um vulto, o "homem grande".
Cartas de tarô, de origem desconhecida.
Muda.
Mora só.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Entrevista: Ulisses da Motta Costa

O diretor de Kassandra, Ulisses da Motta Costa, concedeu esta entrevista foi publicada para o site DarkVeins, conduzida por Lady of Sorrow (que escreveu uma crítica sobre o filme em italiano e em inglês). A entrevista original, em inglês também,  pode ser lida aqui.


Abaixo, segue a tradução para o português, onde o diretor fala sobre as suas origens, sobre os motivos pelos quais fez Kassandra, sua relação com o cinema italiano e sobre Zé do Caixão -- além de outros projetos:

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Entrevista com o cineasta brasileiro Ulisses da Motta Costa, que dirigiu Kassandra, o curta em preto-e-branco que foi premiado no 41º Festival de Gramado na sessão Curta-metragem Gaúcho com Melhor Fotografia.

Ulisses fala de seus trabalhos, paixões, sobre crowdfunding e projetos futuros.

L: Olá, Ulisses, conte-nos sobre você. Onde você cresceu? Qual sua história? Quando e como você começou a trabalhar com cinema? 

U: Vou tentar ser o mais breve o possível: eu nasci e fui criado no sul do Brasil, no interior. Eu morava numa chácara até completar 22 anos, numa pequena cidade chamada Montenegro, no estado do Rio Grande do Sul. Como a maior parte dos brasileiros, sou o resultado de uma miscigenação muito especial, então sou parte português, parte espanhol, parte árabe, parte guarani, parte alemão, parte francês e, claro, parte italiano! Um lado inteiro da minha família ainda usa o sobrenome do nosso ancestral italiano, Manfredini.

Enfim, sobre o cinema: minha brincadeira favorita quando eu era criança era imaginar filmes na minha cabeça. Havia um velho cinema na cidade, mas era longe de casa e o freqüentei poucas vezes durante minha infância. Então, quanto minha mãe finalmente conseguiu dinheiro para comprar um videocassete, no início dos anos 90, eu comecei a assistir a tudo que eu podia. Não levou muito tempo para que eu decidir que queria ser um diretor de cinema, o que era um problema então: a produção de cinema brasileiro estava vivendo a pior crise da sua história, com apenas um longa sendo lançado por ano. As pessoas costumavam dizer na época que nossa cinematografia estava quase morta. As únicas universidades com graduação em cinema eram no Rio de Janeiro e São Paulo, a mais de mil quilômetros de distância de onde eu vivia.

Então, eu tive que esperar ficar adulto; esperar para me mudar para São Leopoldo, uma cidade maior e próxima da capital do estado; esperar que a produção de cinema crescesse de novo no Brasil; esperar que as câmeras digitais finalmente chegassem na indústria para finalmente, em 2004, com 25 anos de idade, eu começasse a produzir meu primeiro curta, O Gritador. E ainda assim esse filme de apenas 15 minutos levou quase três anos para ficar pronto! Mas desde então, eu sempre trabalhei com cinema, às vezes como crítico, às vezes como professor, às vezes como produtor, diretor e roteirista em pequenos projetos.  

Ulisses (ao centro) dirigindo Leandro Lefa e Renata Stein em Kassandra


L: Você é o diretor de Kassandra, um curta de terror em preto-e-branco. Você fez o filme para você mesmo ou tinha um público em mente enquanto o escrevia?

U: Eu acho que sempre fazemos os filmes que queremos ver. Ninguém dedicará dias, meses, anos para fazer algo que não queira assistir, eu acho. Mas eu também acredito que os filmes que tu cria são uma espécie de auto-purificação, ou no mínimo uma auto-fantasia. Os filmes podem ser tanto uma representação de como o mundo poderia ser como uma forma de terapia intensiva. Kassandra é um filme do segundo tipo. Mas no momento em que eu decido que eu farei um filme, eu começo a pensar no público. Nós usamos bastante a expressão “espectador”, uma única pessoa na audiência. Alguém que tu não conhece, uma mulher ou um homem sem rosto. Eu gosto de pensar que esta pessoa em particular só quer fazer parte de uma história, seja ela curta ou épica. Então, eu quero que o espectador acompanhe os personagens e a história que estamos contando. Mesmo se for uma história difícil.

E eu sempre quis trabalhar em preto-e-branco. Quando a ideia do filme explodiu na minha cabeça, já era sem cor. Desde o início era uma história para ser contatada apenas com luz e sombras.

L: Seu filme lida com transtornos de ansiedade (stress pós-traumático, mutismo e agorafobia). Por quê? 

U: Bem, como eu disse, um filme pode ser uma purificação para o seu criador... Eu cuidei de uma pessoa com problemas psiquiátricos por alguns anos. Foi uma vivência complicada, dolorosa e intensa para nós dois. As pessoas costumam me perguntar, depois que veem o filme: como você tem essas ideias? Claro, Kassandra não conta uma história real ou algo assim. Talvez seja a vingança que nunca aconteceu na vida real, hehehehe. Mas essas ideias vieram da observação e da minha experiência do que acontecia com alguém que eu era próximo.

L: Fale sobre o título. Por que “Kassandra"?

U: Digamos que a ideia de Kassandra tomou a minha mente num ataque massivo e coordenado. A maior parte dos conceitos do filme nasceu ao mesmo tempo, numa noite de inverno, incluindo o nome da protagonista. Ela teria visões nas quais ninguém acredita serem reais, então eu lembrei da Cassandra da mitologia grega, uma sacerdotisa que foi amaldiçoada em prever o futuro e nunca ter alguém que acreditasse nas suas previsões. A letra K no nome é uma referência a este personagem lendário, apesar de não ser uma modernização ou adaptação do mito. 

As filmagens de Kassandra



L: Kassandra teve vários apoiadores. O que você pensa a respeito do crowdfunding?

U: É algo maravilhoso. A prova que é importante é o fato de que, mais e mais, cineastas e artistas já conhecidos pela mídia e pelo público e com recursos disponíveis estão preferindo o crowdfunding, porque ele os liberta da burocracia das empresas e dos governos. O artista não precisa negociar para ter sua independência criativa, não precisa fazer o jogo de interesses dentro de um estúdio ou de uma gravadora. O público decide o que vale a pena receber apoio. É como uma “seleção natural artística”, por assim dizer. Claro, se tu é um artista independente, ou iniciante, não dá pra sair pedindo um milhão de dólares. Tu tem que encontrar o caminho com mil dólares. Mas são mil dólares vindos de pessoas que acreditam em ti, ou no mínimo acreditam no projeto. Este tipo de apoio é mais importante do que o dinheiro em si.

L: Você fez algum outro filme antes deste? Se sim, quantos outros? Pode falar sobre eles? E sobre O Gritador?

U: Sim, Kassandra é o meu terceiro curta de ficção. Eu não gosto de me repetir, porque eu tenho interesse em vários assuntos. E eu também gosto de diferentes tipos de cinema e seus incontáveis gêneros. Então, O Gritador (2006) era para ser uma espécie de filme de aventura, mas alguns o consideram um terror “light”. Meu segundo curta, Ninho dos Pequenos (2009), é completamente diferente: é um drama familiar com apenas uma locação e duas atrizes falando o tempo todo.

O Gritador foi um projeto maluco não apenas para um diretor iniciante, mas para uma equipe iniciante também. Como eu disse antes, demorou quase três anos para ser feito. Eu dividi o roteiro e a direção com meu amigo Carlos Porto. O filme é sobre uma lenda folclórica do nosso estado. É uma espécie de alma penada que vagueia à noite nas matas e nos campos. Se tu responder ao seu grito, o fantasma se aproxima mais e mais de ti. Bem, nossas locações eram a mais de 200 km da nossa cidade, em lugares difíceis de atingir: quebramos pelo menos dois carros durante pesquisa e filmagens. Também queríamos usar efeitos visuais, com atores na frente de um fundo azul e composições com desenhos feitos à mão e elementos em computação gráfica. Tudo isso, claro, sem dinheiro. Tem algumas coisas que só a ingenuidade pode explicar... Se vocês quiserem ver, tem no Youtube.

L: O que você acha da crescente popularidade dos filmes independentes? 

U: Eu creio que é um fenômeno inevitável. É mais fácil aprender sobre diferentes tipos de expressão artística na Internet. Então, se tu te interessa sobre certo assunto, dá para pesquisar a respeito dele infinitamente. Tu sempre vai achar algo novo. Tu pode te aprofundar em coisas que não têm acesso à grande mídia. Isso inclui não apenas filmes, mas música, artes visuais, fotografia...

L: Quais são suas maiores influências? Qual é o seu Top 5 de favoritos de todos os tempos?

U: Hum, é difícil responder... Eu acho que tudo que assistimos pode ser uma influência. Eu sinto que Bruce Lee está no meu DNA artístico tanto quanto Fritz Lang. Mas eu tento usar alguns diretores como exemplo para mim. Digamos que Spielberg me ensinou a estar cercado de colaboradores talentosos, que Kubrick me ensinou a nunca me repetir, que Hitchcock me ensinou a importância de planejar previamente o que será filmado e que Werner Herzog me ensinou que tu tem que ser um filho da puta corajoso para fazer cinema. Isso, claro, se eu aprendi alguma coisa.

Sobre o Top 5... Vai parecer esquizofrênico, eu garanto: Ben-Hur (1959), Antes do Amanhecer (1995), Os Caçadores da Arca Perdida (1981), Metrópolis (1927) e Três Homens em Conflito (1966). E o meu cineasta favorito de todos os tempos é Akira Kurosawa.

L: Qual é o seu cineasta italiano de terror favorito?

U: Deixe-me primeiro contar sobre minha relação com o cinema italiano! Quando eu era garoto, havia um monte de filmes italianos passando na televisão, que eu não sabia serem italianos (porque, claro, eles eram dublados em português). Então, eu passava as tardes de sábado assistindo a velhos filmes peplum, como Os Argonautas (1960) ou Os Últimos Dias de Pompeia (1959). E, claro, alguns filmes de terror à noite, como A Ilha dos Homens-Peixes. Eu vi várias vezes em VHS uma coprodução Brasil-Itália dos anos 80, Perdidos no Vale dos Dinossauros (também conhecido como Cannibal Ferox 2). Quando eu decidi que seria cineasta, eu comecei a pesquisar sobre cinema em livros e revistas. Naquela época, tudo que eu encontrava sobre filmes italianos eram coisas sobre Fellini, Antonioni e Visconti, ou sobre o Neorrealismo. Não havia menção aos giallo, aos peplum ou aos western-spaghettis, Mario Bava, Ruggero Deodato ou Luigi Cozzi. Apenas anos mais tarde eu fiquei sabendo deste universo fantástico. Só aí descobri que aqueles filmes profundamente divertidos que eu via eram italianos.

Meu artista italiano de terror favorito não é um cineasta, é uma banda! Eu adoro o trabalho do Goblin em Suspiria, Prelúdio para Matar e Zombie – O Despertar dos Mortos. O que eles conseguiram atingir é totalmente único em termos de trilha sonora.

A refinada formação do nosso diretor em filmes italianos....

L: José Mojica Marins é um adorado cineasta brasileiro. O que você acha do seu personagem Zé do Caixão, criado para o filme À Meia-Noite Levarei Sua Alma?

U: Mojica é um colosso. Ele é uma grande influência não apenas para os fãs brasileiros de terror, mas para todos os cineastas do país. Ele é um cara sem nenhuma educação formal sobre cinema e foi simplesmente revolucionário para o seu tempo, especialmente nos anos 60. Ele foi perseguido e alguns dos seus trabalhos foram censurados durante a Ditadura Militar. Um dos seus filmes mais intrigantes, O Despertar da Besta, foi feito graças a seus amigos, que lhe doaram película. Ainda assim, o original foi apreendido pelas autoridades. O filme só viu a luz do dia poucos anos atrás.

Ele também fez tudo que era tipo de filme, não só terror. Fez desde fitas experimentais a faroestes. Ele também dirigiu filmes pornôs nos anos 80 para sobreviver. Sobre o personagem, Zé do Caixão, é um dos maiores ícones do horror de todos os tempos. Vocês sabem como ele foi criado? Mojica sonhou que um homem de capa e cartola o levava para ver a sua própria sepultura. Ele acordou assustado feito o inferno e decidiu fazer um filme sobre esse homem assustador. Foi assim que ele fez À Meia-Noite Levarei Sua Alma, um filme de terror incrível e poderoso para os padrões da época.

L: Quem é o melhor diretor brasileiro em atividade hoje?

U: No gênero terror, o maior nome independente é Rodrigo Aragão, que recentemente fez uma trilogia de zumbis e monstros. Meu amigo Davi de Oliveira Pinheiro fez uma curiosa mistura de gêneros em Porto dos Mortos. Além do universo de fantasia e horror, tem vários bons cineastas, tais como Fernando Meirelles, Afonso Poyart, José Padilha (que recentemente dirigiu a nova versão de Robocop) e Jorge Furtado, que trabalha no meu estado e é uma grande referência para mim desde os anos 90.

L: Quem são os seus autores de horror favoritos?

U: Eu confesso: nunca me interessei muito em literatura de horror. Mas a idéia para Kassandra surgiu quando eu lia Nas Montanhas da Loucura. Como preparação para o filme, eu devorei os trabalho de H.P. Lovecraft. E fiz o elenco e a equipe também lerem alguns dos seus contos!

L: Qual seu próximo projeto? 

U: Eu tenho muitos projetos! Quem não tem? Eu vou começar a montagem do meu novo curta, Luz Natural, neste mês. É um trabalho experimental totalmente filmando sem luz artificial e com apenas dois atores em cena, conversando depois de terem transado. Definitivamente não é um filme de terror! Eu estive no Rio de Janeiro recentemente, trabalhando como assistente de direção para o meu amigo Victor Fiuza num drama social chamado Os Olhos de Cecília. Filmamos boa parte deste trabalho na favela, foi uma experiência realmente intensa. Também estou produzindo Pelos Velhos Tempos, um roteiro de Roger Monteiro, o cara que escreveu Kassandra, e que será dirigido por Pedro Barbosa.

E tem os longas. Um destes projetos é uma ficção-científica dividida em episódios, todos sobre o mesmo universo, com seis diretores diferentes (incluindo eu). O título provisório é O Fim da História. Outro projeto é O Pecado da Carne, uma adaptação da peça O Linguiceiro da Rua do Arvoredo, que por sua vez é baseada na história do primeiro serial killer brasileiro, um homem que fazia linguiça da carne das suas vítimas e as vendia para toda uma cidade no século XIX.

Ah, sim. O mesmo Roger Monteiro está tentando me convencer a fazer outro filme de terror, mas com mais violência e gore. Kiumba é o nome e é sobre uma entidade afro-brasileira que é convocada quando se quer vingança. Mas eu estou pensando sobre isso ainda...

L: Deixe uma mensagem para a comunidade DarkVeins!

U: Quero agradecer a oportunidade e de desejar que o DarkVeins cresça mais e mais. É um espaço virtual incrível. Saudações do Brasil para todos!

L: Obrigada, Ulisses! Boa sorte para você!

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