O diretor de Kassandra, Ulisses da Motta
Costa, concedeu esta entrevista foi publicada para o site DarkVeins,
conduzida por Lady of Sorrow (que escreveu uma crítica sobre o filme em italiano e em inglês).
A entrevista original, em inglês também, pode ser lida aqui.
Abaixo, segue a tradução para o português,
onde o diretor fala sobre as suas origens, sobre os motivos pelos quais fez
Kassandra, sua relação com o cinema italiano e sobre Zé do Caixão -- além de
outros projetos:
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Entrevista com o cineasta brasileiro
Ulisses da Motta Costa, que dirigiu Kassandra,
o curta em preto-e-branco que foi premiado no 41º Festival de Gramado na sessão
Curta-metragem Gaúcho com Melhor Fotografia.
Ulisses fala de seus trabalhos, paixões,
sobre crowdfunding e projetos futuros.
L: Olá, Ulisses, conte-nos sobre você.
Onde você cresceu? Qual sua história? Quando e como você começou a trabalhar
com cinema?
U: Vou tentar ser o mais breve o possível:
eu nasci e fui criado no sul do Brasil, no interior. Eu morava numa chácara até
completar 22 anos, numa pequena cidade chamada Montenegro, no estado do Rio
Grande do Sul. Como a maior parte dos brasileiros, sou o resultado de uma
miscigenação muito especial, então sou parte português, parte espanhol, parte
árabe, parte guarani, parte alemão, parte francês e, claro, parte italiano! Um
lado inteiro da minha família ainda usa o sobrenome do nosso ancestral
italiano, Manfredini.
Enfim, sobre o cinema: minha brincadeira favorita quando eu era criança era
imaginar filmes na minha cabeça. Havia um velho cinema na cidade, mas era longe
de casa e o freqüentei poucas vezes durante minha infância. Então, quanto minha
mãe finalmente conseguiu dinheiro para comprar um videocassete, no início dos
anos 90, eu comecei a assistir a tudo que eu podia. Não levou muito tempo para
que eu decidir que queria ser um diretor de cinema, o que era um problema
então: a produção de cinema brasileiro estava vivendo a pior crise da sua
história, com apenas um longa sendo lançado por ano. As pessoas costumavam
dizer na época que nossa cinematografia estava quase morta. As únicas
universidades com graduação em cinema eram no Rio de Janeiro e São Paulo, a
mais de mil quilômetros de distância de onde eu vivia.
Então, eu tive que esperar ficar adulto; esperar para me mudar para São
Leopoldo, uma cidade maior e próxima da capital do estado; esperar que a
produção de cinema crescesse de novo no Brasil; esperar que as câmeras digitais
finalmente chegassem na indústria para finalmente, em 2004, com 25 anos de
idade, eu começasse a produzir meu primeiro curta, O Gritador. E ainda assim esse filme de apenas 15 minutos levou
quase três anos para ficar pronto! Mas desde então, eu sempre trabalhei com cinema,
às vezes como crítico, às vezes como professor, às vezes como produtor, diretor
e roteirista em pequenos projetos.
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Ulisses (ao centro) dirigindo Leandro Lefa e Renata Stein em Kassandra |
L: Você é o diretor de
Kassandra, um curta de terror em preto-e-branco. Você fez o filme para você
mesmo ou tinha um público em mente enquanto o escrevia?
U: Eu acho que sempre fazemos os filmes que queremos ver. Ninguém dedicará
dias, meses, anos para fazer algo que não queira assistir, eu acho. Mas eu
também acredito que os filmes que tu cria são uma espécie de auto-purificação,
ou no mínimo uma auto-fantasia. Os filmes podem ser tanto uma representação de
como o mundo poderia ser como uma forma de terapia intensiva. Kassandra é um filme do segundo tipo.
Mas no momento em que eu decido que eu farei um filme, eu começo a pensar no público.
Nós usamos bastante a expressão “espectador”, uma única pessoa na audiência.
Alguém que tu não conhece, uma mulher ou um homem sem rosto. Eu gosto de pensar
que esta pessoa em particular só quer fazer parte de uma história, seja ela
curta ou épica. Então, eu quero que o espectador acompanhe os personagens e a
história que estamos contando. Mesmo se for uma história difícil.
E eu sempre quis trabalhar em preto-e-branco. Quando a ideia do filme
explodiu na minha cabeça, já era sem cor. Desde o início era uma história para
ser contatada apenas com luz e sombras.
L: Seu filme lida com
transtornos de ansiedade (stress pós-traumático, mutismo e agorafobia). Por
quê?
U: Bem, como eu disse, um filme pode ser uma purificação para o seu
criador... Eu cuidei de uma pessoa com problemas psiquiátricos por alguns anos.
Foi uma vivência complicada, dolorosa e intensa para nós dois. As pessoas
costumam me perguntar, depois que veem o filme: como você tem essas ideias?
Claro, Kassandra não conta uma
história real ou algo assim. Talvez seja a vingança que nunca aconteceu na vida
real, hehehehe. Mas essas ideias vieram da observação e da minha experiência do
que acontecia com alguém que eu era próximo.
L: Fale sobre o título. Por que
“Kassandra"?
U: Digamos que a ideia de Kassandra
tomou a minha mente num ataque massivo e coordenado. A maior parte dos
conceitos do filme nasceu ao mesmo tempo, numa noite de inverno, incluindo o
nome da protagonista. Ela teria visões nas quais ninguém acredita serem reais,
então eu lembrei da Cassandra da mitologia grega, uma sacerdotisa que foi
amaldiçoada em prever o futuro e nunca ter alguém que acreditasse nas suas
previsões. A letra K no nome é uma referência a este personagem lendário,
apesar de não ser uma modernização ou adaptação do mito.
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As filmagens de Kassandra |
L: Kassandra teve vários apoiadores. O
que você pensa a respeito do crowdfunding?
U: É algo maravilhoso. A prova que é importante é o fato de que, mais e mais,
cineastas e artistas já conhecidos pela mídia e pelo público e com recursos
disponíveis estão preferindo o crowdfunding, porque ele os liberta da
burocracia das empresas e dos governos. O artista não precisa negociar para ter
sua independência criativa, não precisa fazer o jogo de interesses dentro de um
estúdio ou de uma gravadora. O público decide o que vale a pena receber apoio.
É como uma “seleção natural artística”, por assim dizer. Claro, se tu é um
artista independente, ou iniciante, não dá pra sair pedindo um milhão de
dólares. Tu tem que encontrar o caminho com mil dólares. Mas são mil dólares
vindos de pessoas que acreditam em ti, ou no mínimo acreditam no projeto. Este
tipo de apoio é mais importante do que o dinheiro em si.
L: Você fez algum outro filme antes
deste? Se sim, quantos outros? Pode falar sobre eles? E sobre O Gritador?
U: Sim, Kassandra é o meu terceiro curta de ficção. Eu não gosto de me repetir,
porque eu tenho interesse em vários assuntos. E eu também gosto de diferentes
tipos de cinema e seus incontáveis gêneros. Então, O Gritador (2006) era para ser uma espécie de filme de aventura,
mas alguns o consideram um terror “light”. Meu segundo curta, Ninho dos Pequenos (2009), é
completamente diferente: é um drama familiar com apenas uma locação e duas
atrizes falando o tempo todo.
O Gritador foi um projeto
maluco não apenas para um diretor iniciante, mas para uma equipe iniciante
também. Como eu disse antes, demorou quase três anos para ser feito. Eu dividi
o roteiro e a direção com meu amigo Carlos Porto. O filme é sobre uma lenda
folclórica do nosso estado. É uma espécie de alma penada que vagueia à noite
nas matas e nos campos. Se tu responder ao seu grito, o fantasma se aproxima
mais e mais de ti. Bem, nossas locações eram a mais de
200 km da nossa cidade, em lugares
difíceis de atingir: quebramos pelo menos dois carros durante pesquisa e
filmagens. Também queríamos usar efeitos visuais, com atores na frente de um
fundo azul e composições com desenhos feitos à mão e elementos em computação
gráfica. Tudo isso, claro, sem dinheiro. Tem algumas coisas que só a
ingenuidade pode explicar... Se vocês quiserem ver,
tem no Youtube.
L: O que você acha da crescente
popularidade dos filmes independentes?
U: Eu creio que é um fenômeno inevitável. É mais fácil aprender sobre
diferentes tipos de expressão artística na Internet. Então, se tu te interessa
sobre certo assunto, dá para pesquisar a respeito dele infinitamente. Tu sempre
vai achar algo novo. Tu pode te aprofundar em coisas que não têm acesso à
grande mídia. Isso inclui não apenas filmes, mas música, artes visuais,
fotografia...
L: Quais são suas maiores influências?
Qual é o seu Top 5 de favoritos de todos os tempos?
U: Hum, é difícil responder... Eu acho que tudo que assistimos pode ser
uma influência. Eu sinto que Bruce Lee está no meu DNA artístico tanto quanto
Fritz Lang. Mas eu tento usar alguns diretores como exemplo para mim. Digamos
que Spielberg me ensinou a estar cercado de colaboradores talentosos, que
Kubrick me ensinou a nunca me repetir, que Hitchcock me ensinou a importância de
planejar previamente o que será filmado e que Werner Herzog me ensinou que tu
tem que ser um filho da puta corajoso para fazer cinema. Isso, claro, se eu
aprendi alguma coisa.
Sobre o Top 5... Vai parecer esquizofrênico, eu garanto: Ben-Hur (1959), Antes do Amanhecer (1995), Os
Caçadores da Arca Perdida (1981), Metrópolis
(1927) e Três Homens em Conflito
(1966). E o meu cineasta favorito de todos os tempos é Akira Kurosawa.
L: Qual é o seu cineasta italiano de
terror favorito?
U: Deixe-me primeiro contar sobre minha relação com o cinema italiano! Quando
eu era garoto, havia um monte de filmes italianos passando na televisão, que eu
não sabia serem italianos (porque, claro, eles eram dublados em português).
Então, eu passava as tardes de sábado assistindo a velhos filmes peplum, como Os Argonautas (1960) ou Os Últimos Dias de Pompeia (1959). E,
claro, alguns filmes de terror à noite, como A Ilha dos Homens-Peixes. Eu vi várias vezes em VHS uma coprodução
Brasil-Itália dos anos 80, Perdidos no
Vale dos Dinossauros (também conhecido como Cannibal Ferox 2). Quando eu decidi que seria cineasta, eu comecei
a pesquisar sobre cinema em livros e revistas. Naquela época, tudo que eu
encontrava sobre filmes italianos eram coisas sobre Fellini, Antonioni e Visconti,
ou sobre o Neorrealismo. Não havia menção aos giallo, aos peplum ou aos
western-spaghettis, Mario Bava, Ruggero Deodato ou Luigi Cozzi. Apenas anos
mais tarde eu fiquei sabendo deste universo fantástico. Só aí descobri que
aqueles filmes profundamente divertidos que eu via eram italianos.
Meu artista italiano de terror favorito não é um cineasta, é uma banda!
Eu adoro o trabalho do Goblin em
Suspiria,
Prelúdio para Matar e
Zombie – O Despertar dos Mortos. O que
eles conseguiram atingir é totalmente único em termos de trilha sonora.
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A refinada formação do nosso diretor em filmes italianos.... |
L: José Mojica Marins é um adorado
cineasta brasileiro. O que você acha do seu personagem Zé do Caixão, criado
para o filme À Meia-Noite Levarei Sua Alma?
U: Mojica é um colosso. Ele é uma grande influência não apenas para os fãs
brasileiros de terror, mas para todos os cineastas do país. Ele é um cara sem
nenhuma educação formal sobre cinema e foi simplesmente revolucionário para o
seu tempo, especialmente nos anos 60. Ele foi perseguido e alguns dos seus
trabalhos foram censurados durante a Ditadura Militar. Um dos seus filmes mais
intrigantes, O Despertar da Besta,
foi feito graças a seus amigos, que lhe doaram película. Ainda assim, o
original foi apreendido pelas autoridades. O filme só viu a luz do dia poucos
anos atrás.
Ele também fez tudo que era tipo de filme, não só terror. Fez desde fitas
experimentais a faroestes. Ele também dirigiu filmes pornôs nos anos 80 para
sobreviver. Sobre o personagem, Zé do Caixão, é um dos maiores ícones do horror
de todos os tempos. Vocês sabem como ele foi criado? Mojica sonhou que um homem
de capa e cartola o levava para ver a sua própria sepultura. Ele acordou
assustado feito o inferno e decidiu fazer um filme sobre esse homem assustador.
Foi assim que ele fez À Meia-Noite
Levarei Sua Alma, um filme de terror incrível e poderoso para os padrões da
época.
L: Quem é o melhor diretor brasileiro em
atividade hoje?
U: No gênero terror, o maior nome independente é Rodrigo Aragão, que recentemente
fez uma trilogia de zumbis e monstros. Meu amigo Davi de Oliveira Pinheiro fez
uma curiosa mistura de gêneros em Porto
dos Mortos. Além do universo de fantasia e horror, tem vários bons
cineastas, tais como Fernando Meirelles, Afonso Poyart, José Padilha (que
recentemente dirigiu a nova versão de Robocop)
e Jorge Furtado, que trabalha no meu estado e é uma grande referência para mim
desde os anos 90.
L: Quem são os seus autores de horror
favoritos?
U: Eu confesso: nunca me interessei muito em literatura de horror. Mas a idéia
para Kassandra surgiu quando eu lia Nas Montanhas da Loucura. Como
preparação para o filme, eu devorei os trabalho de H.P. Lovecraft. E fiz o
elenco e a equipe também lerem alguns dos seus contos!
L: Qual seu próximo projeto?
U: Eu tenho muitos projetos!
Quem não tem? Eu vou começar a montagem do meu novo curta, Luz Natural, neste mês. É um trabalho experimental totalmente filmando sem luz
artificial e com apenas dois atores em cena, conversando depois de terem
transado. Definitivamente não é um filme de terror! Eu estive no Rio de Janeiro
recentemente, trabalhando como assistente de direção para o meu amigo Victor
Fiuza num drama social chamado Os Olhos de Cecília. Filmamos boa parte deste trabalho na favela, foi uma
experiência realmente intensa. Também estou produzindo Pelos Velhos
Tempos, um roteiro de Roger Monteiro, o cara que escreveu
Kassandra, e que será dirigido por Pedro Barbosa.
E tem os longas. Um destes projetos é uma ficção-científica dividida em
episódios, todos sobre o mesmo universo, com seis diretores diferentes
(incluindo eu). O título provisório é O
Fim da História. Outro projeto é O
Pecado da Carne, uma adaptação da peça O
Linguiceiro da Rua do Arvoredo, que por sua vez é baseada na história do
primeiro serial killer brasileiro, um homem que fazia linguiça da carne das
suas vítimas e as vendia para toda uma cidade no século XIX.
Ah, sim. O mesmo Roger Monteiro está tentando me convencer a fazer
outro filme de terror, mas com mais violência e gore. Kiumba é o nome e é sobre uma entidade afro-brasileira que é
convocada quando se quer vingança. Mas eu estou pensando sobre isso ainda...
L: Deixe uma mensagem para a comunidade
DarkVeins!
U: Quero agradecer a oportunidade e de desejar que o DarkVeins cresça mais e
mais. É um espaço virtual incrível. Saudações do Brasil para todos!
L: Obrigada, Ulisses! Boa sorte para
você!