O texto a seguir é de autoria da psicóloga Manuela Marques, que assistiu ao curta no Ipsi In Cine, em Novo Hamburgo/RS. É uma análise de Kassandra sob o ponto de vista da psicologia.
O texto contêm alguns spoilers, então aconselhamos para quem já assistiu ao filme.
Minhas impressões sobre Kassandra
********AVISO: Contém Spoilers!***********
No dia 8 de maio, finalmente consegui assistir o curta Kassandra, do diretor Ulisses
Da Motta Costa, no Ipsi in Cine, evento cultural do Instituto de Psicologia de
Novo Hamburgo (IPSI), o qual tive igualmente o imenso prazer de ajudar a
organizar. É impossível não se remeter, num primeiro momento ao brilhante e
mais conhecido filme de Hitchcock, o clássico Psicose, afinal se trata de um
suspense em preto e branco, com cortes rápidos que capturam o olhar com
eficiência tamanha, que sentimos medo de piscar para não perder nenhum detalhe.
No entanto, no decorrer da trama, abandonamos tais semelhanças e o expectador
se sente jogado para dentro do enredo, como uma espécie de testemunha oculta.
Kassandra é introduzida através da interlocução de um terapeuta como uma
paciente que sofre diversas pertubações psicológicas, que remetem em sua forma
sintomática para além do espectro autista à figura de um bebê: não fala, se
alimenta basicamente de leite, além da composição infantilizada a qual se
apresenta, com brinquedos e vestimentas que retomam uma criança pequena. O
olhar caleidoscópico de Renata Stein, que deu vida à personagem, é um dos
pontos brilhantes de sua atuação, capaz de envolver, mobilizar, aterrorizar e
emocionar o público sem emitir uma única palavra.
A ambivalência entre agressividade e desproteção, sexualidade e infantilização,
mutismo e comunicação se fazem presentes o tempo inteiro, como em uma das cenas
onde um canário preso em uma gaiola fica fortemente amedrontado com a presença
dela, ainda que seus movimentos sejam suaves e aparentemente pacíficos. São
diversos os detalhes simbólicos que provocam a mente, convocando-nos a
encontrar uma linha mestra e lógica para entender o que afinal se passa com
Kassandra ou antever o final da história, muito embora o final não nos traga
respostas concretas. Pelo contrário: é preciso um extenso período de digestão
para darmos ao filme a interpretação que quisermos. Na discussão que tivemos no
evento, o próprio diretor Ulisses não nos deu respostas, afirmando que ele
mesmo não as tem.
É isto uma das coisas que torna o filme tão interessante e o faz sair do lugar
comum, a amplitude de interpretações que ele permite, como a arte em seu estado
mais puro. Inúmeras vezes durante a trama, me veio à mente o conceito bioniano
de “Terror sem Nome”, que na minha modesta opinião parece traduzir a falta de
voz, de cor e de explicações concretas. Para Bion, um dos grandes gênios
teóricos psicanalíticos, o "Terror sem Nome" estaria relacionado a um
estágio pré-verbal, advindo de experiências infantis de caráter traumático,
adquiridas sem a menor possibilidade de racionalização, que não puderam ser
convertidas em palavras, em fala. Mediante a atemporalidade que caracteriza o
inconsciente, na vida adulta, tais aspectos que foram lançados e permanecem
inconscientemente armazenados de maneira caótica, retornam para aterrorizar o
sujeito, como um bloco imenso de angústia, de caráter inominável.
O filme, ainda que de maneira não intencional, retrata de forma belíssima este
estado descrito na literatura psicanalítica. A cena em que particularmente me
emocionou, é a em que ela telefona para sua mãe, e como não pode falar, se
comunica arranhando o telefone para responder “sim” ou “não”. O abandono e
descaso da mãe na cena, o imenso desamparo estampado nos olhos da personagem, o
silêncio da cena ao desligar, a falta de cor, petrificam o olhar. Um abandono
que se pode inferir que não se trata do primeiro, para que ela tenha chegado
àquele estado psíquico. Ali, ao menos no que tange a minha interpretação
pessoal, temos uma pista de um assassinato real. Talvez o único que realmente
existiu, uma vez que a cena onde um assassinato ocorre concretamente deixa
dúvidas quanto à sua legitimidade, por não sabermos se tratar de um
acontecimento real ou alucinado pela personagem, enquanto a cena do telefone
nos transforma em testemunhas oculares de um assassinato psíquico.
Concluo a minha crítica ao filme Kassandra sem traçar conclusões nem apresentar
respostas, fazendo justiça a este curta que de forma tão generosa nos permite
refletir e perguntar mais do que concluir e responder. Ou como diria Bion,
sobre os conteúdos entregues sem o menor esforço no que tange a construção do
pensamento, “a resposta é o infortúnio da pergunta”. A única coisa que é
impossível não afirmar sobre ele é que sem a menor sombra de dúvidas, é um
filme que realmente merece ser assistido.
Manuela Marques é psicóloga clínica.
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